9 de dez. de 2011

“Recanto”: Gal Costa, Caetano Veloso e a dimensão do som


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Gal Costa não é diva, é musa. Algumas divas são insuportáveis, mas todas as musas são inspiradoras. Muitas divas escondem suas inseguranças atrás de máscaras de crueldade. Musas revelam-se na arte, confundem-se com a própria arte, detêm um encanto etéreo, transcendental, mas sobretudo leve. Diante disso, faço uma pergunta: qual é a única cantora brasileira que teve, tem e sempre terá os maiores compositores deste país dispostos a compor para ela? É uma pergunta que possui resposta óbvia porque Gal Costa é, na essência mais positiva do termo, uma intérprete com “i” maiúsculo. Seu novo álbum, intitulado “Recanto” (2011), lançado sob produção de Caetano Veloso, marca um grande reencontro na MPB. Um reencontro de Gal com uma parcela de si mesma, um reencontro com Caetano, um reencontro com o experimentalismo, um reencontro com as dimensões mínimas da voz.
Trata-se de um trabalho debochado em que Gal Costa recusa e, ao mesmo tempo, assume o título ambíguo de “grande cantora”. Todas as faixas são de autoria de Caetano Veloso e canções como “Autotune autoerótico” revelam tanto uma louvação de si mesma (Gal) quanto uma rajada de veneno dirigida às “novas” cantoras que, em grande parte, não reconhecem em si a influência de Gal e sua importância na criação de um canto moderno no Brasil, uma forma de dizer coisas cantadas com os pés na versatilidade, um jeito de cantar pautado na tradição, mas com o olhar voltado para a modernidade.
Caetano Veloso pensou neste disco com o intuito de recolocar essas coisas no seu devido lugar. E ninguém melhor do que ele para fazer isso. Nos trabalhos acadêmicos que tenho desenvolvido, defendo a ideia de que Caetano Veloso engendrou um discurso conceitual para o tropicalismo,Gilberto Gil desenvolveu um discurso musical e à Gal Costa coube a invenção de um discurso performático para o tropicalismo. Sua voz e o seu corpo foram os responsáveis por orientar toda a constituição performática (de canto e de cênica) da Tropicália. Em minhas brincadeiras pessoais, com amigos em minha intimidade, sempre digo: “Gal é tudo aquilo que Caetano gostaria de ser e o contrário também é verdadeiro”. É óbvio que isto é uma brincadeira, como também é óbvio que essa brincadeira tem um fundo de verdade.
RECANTO
“Recanto” é simultaneamente um regresso e um avanço. Regresso porque marca um retorno a dimensões minimalistas de “Domingo” (álbum lançado por Gal e Caetano em 1967), avanço porque Caetano Veloso propõe uma retomada de aspectos passados a partir de um olhar para o futuro. “Mansidão” é talvez a faixa que mais evidencie o regresso e o avanço aos quais me refiro: é um retorno a “Domingo” e um claro aceno para o futuro. Um futuro em que o envelhecimento está acompanhado da contemporaneidade das coisas, da vida e dos conceitos.
A velhice é obscura, pensar na morte é inevitável, mas “Recanto”, apesar de tratar de temas melancólicos e problemáticos, é um grito à vida, uma autoproclamação de juventude criativa de ambas as partes. É uma reinserção de Gal Costa ao começo de todo o percurso tropicalista, porém, agora, um tropicalismo pós-moderno, com timbres eletrônicos, amadurecido, envelhecido e rejuvenescido, contraditório. A canção “Tudo dói” é esta constatação de que a velhice e a juventude convivem, conflituosamente, dentro dos mesmos corpos: os corpos de Gal e Caetano.
A faixa “Neguinho” talvez trave um diálogo indireto com “Mini-mistério” (composição de Gilberto Gil gravada por Gal em 1970 para o LP “LeGal”) ao denunciar valores importantes da existência humana sendo “devorados” pelos valores do consumismo. Percebe-se que o Tropicalismo, desde sua eclosão na década de 1960, ainda se mantém atual.
“Miami Maculelê” é a composição com maior apelo (para o bem e para o mal) direcionado a uma massa maior de público. É uma obra em que Caetano aproxima funk e maculelê, deixando claro que as batidas modernas utilizadas na música de hoje possuem raízes tanto num âmbito internacional quanto no passado e na tradição negra do Brasil. E diante disso, Caetano pergunta: “Mas por que eu fui meter você no meu som, no meu bom Miami Maculelê?” Pergunta dirigida à própria Gal, uma dama da voz. E a voz de Gal dança, levemente, junto com ele, com São Dimas, Robin Hood e o Anjo 45. As referências estão todas à mostra: o Tropicalismo é uma colagem de disparidades harmonizadas.
Em “O menino”, Gal canta para si, para sua maternidade, para o seu renascimento. As guitarras, sobrepostas à voz, lembram as intenções musicais de Ceatano Veloso nos álbuns “Cê” (2006) e“Zii e Zie” (2009).
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Mas Gal Costa, pela importância que tem no cenário da música nacional, é, como sempre, desde o início de sua carreira, muito criticada negativamente. Se canta grandes clássicos da MPB, é taxada como conservadora. Se é ousada, dizem que se arriscou muito. Se se dedica à interpretação, dizem que é uma mera vocalista. O que mais me surpreende nas críticas dirigidas à Gal nestes longos 44 anos de carreira, é que ela sempre foi acusada de ser uma não-intérprete. É irônico, é contradito, é, no mínimo, irresponsável que pessoas que não tenham legitimidade (acadêmica, performática, cultural) para falar de música se posicionem dessa maneira. Ser intérprete é simplesmente se entregar, dar voz ao outro, colorir melodias, transformar a alteridade no próprio eu. Há muitas pessoas que entendem que ser intérprete é correr pelo palco, chorar sobre cadeiras enquanto se canta, recitar, cantar gemendo, derramar maquiagem sobre as bochechas… ser intérprete pode ser tudo isso, mas é muito mais. Ser intérprete é ter o domínio absoluto de sua arte com a finalidade de, simplesmente, ser uma folha em branco por onde se inscrevem desafios traçados por uma teia de significados dados por pessoas diversas, inclusive ela: a cantora.
Muitas “intérpretes” da música brasileira passaram décadas escolhendo repertórios que lhes convêm, canções que não rompem os parâmetros ditados pela incapacidade vocal e interpretativa que elas têm. Ser intérprete é ser capaz de ir aos limites com o seu próprio discurso vocal. E talvez seja esse o ponto principal de minha identificação com Gal Costa e que tenho defendido a partir de minhas interpretações antropológicas sobre seu trabalho: o seu discurso está no corpo, na voz, no empenho criativo com que ultrapassa as zonas limítrofes que lhes são impostas pelo tempo, pelas pessoas e por seus críticos. Gal nunca precisou que sua vida fosse uma tragédia para que cantasse com emoção, nunca recorreu a recursos extra-musicais, nunca fez gestos caricatos no palco (algum comediante saberia imitar os seus gestos em cena?), nunca criou uma aura de rainha em torno de si. Gal Costa não se impõe como uma rainha, mas é eleita por seus admiradores e, principalmente, pelos compositores. No texto em que Caetano Veloso escreveu para o encarte de “Recanto”, revelou: “Tom Jobim disse até morrer que ela era sua cantora favorita”. Como escrevi antes, Gal é musa e musas são sedutoras, são desejáveis. Musas inspiram e divas problemáticas provocam rejeição.
Bravo
Aos 66 anos, Gal Costa consegue provocar um grande impacto, ser capa da Revista Bravo!, ser aclamada pela crítica internacional e ser alvo de críticas controversas no Brasil. Isso não deixa de ser um ótimo termômetro de sua importância, justamente num período em que “grandes” e “jovens” cantoras também estão lançando seus álbuns. (A quantas andam a repercussão de seus trabalhos?) Aliás, muitas “grandes” e “jovens” cantoras são compositoras, fazem música com “conceito”. Esta é a moda. Se estão plenas de conceituações, estão esvaziadas de musicalidade. É inevitável constatar que suas composições não trazem nenhum tipo de inovação harmônica e ainda denunciam que elas, quase todas, parecem ainda frequentar as aulas inicias de quem está aprendendo a tocar violão. Mas a “maquiagem” dos arranjos disfarça certas deficiências musicais. Neste sentido, prefiro que Gal Costa seja uma excelente intérprete do que uma cantora mediana e uma péssima compositora.
O que é mais intrigante é ler as críticas que se referem a ela como apenas uma mera intérprete, uma mera vocalista em seu próprio projeto e, ainda pior, ressuscitam antigos projetos como “-FA-TAL-” e “Plural” como sendo exclusivamente obras de outros. Se Gal Costa é uma mera vocalista, proponho um desafio: que tal imaginar “-FA-TAL-”, “Plural” e todo o projeto tropicalista com outra cantora? Como sairia? Uma tropicália caricata, antiquada? Uma tropicália derramada? Interpretações com excessos de vibratos mal feitos? Seria, literalmente, um Tropicalismo fora do tom. O novo álbum de Gal Costa é uma grande surpresa, mas nem deveria ser, pois, no Brasil, Gal Costa sempre foi uma reinventora de si mesma. E (é bom lembrar) reinvenção com bom gosto, aliada à dimensão do risco. Nestes mais de 40 anos de carreira, Gal Costa nos surpreende a cada trabalho. É justamente esse fator que faz dela um grande alvo para as críticas: os percursos díspares que escolhe. E, mesmo quando é escolhida, sua adesão a um projeto significa uma opção pelo desafio, seja ele cantar com uma orquestra ou acompanhada por programações eletrônicas. Os jornalistas leigos em música se prendem às letras que elas têm, mas esquecem que, antes de tudo, a música é feita por sons. Quando canta, Gal Costa tem diálogo direto com os sons, entende a música pelo que ela é, não precisa de fatores intermediários entre ela e o som.
Gal Costa se resguarda, nunca foi uma mulher eloqüente, talvez não seja tão boa com as palavras, talvez não tenha aguçada a malícia exata para lidar com jornalistas que, em muitos casos, são pagos de acordo com o grau de parcialidade e destruição que conseguem imprimir em seus textos. Alguns “jornalistas” a acusam de ser uma cantora “técnica” e isso é um paradoxo justamente porque são afirmações proferidas pelas mãos ou bocas de pessoas que não sabem definir – e muito menos distinguir – o que é técnica. Falam em técnica sem saber o que ela realmente é. Conceituam algo que somente pode ser conceituado por alguém que tenha uma boa formação musical. E Gal vem mostrar o contrário. Está livre da obrigação da perfeição que sempre lhe foi cobrada. E cantando em regiões vocais que se aproximam da fala, assim como quando começou sua carreira. “Recanto” evidencia uma não-técnica, uma Gal natural. Mas, aos olhos de seus críticos, não é possível enxergar que, para alcançar regiões extremamente agudas da voz, para gritar afinado e dividir ritmicamente o canto, é necessário muita técnica. Para todos eles, talvez isso seja definido como “emoção” ou “inspiração”. Não. Isso é um saber específico que somente os grandes artistas da voz o tem. E Gal Costa, mesmo sendo detentora deste saber, o abandonou em “Recanto”, não lança mão de tais recursos, é debochada, ri de si e dos outros. Nega a si e se autoafirma ao mesmo tempo. Torna-se a contradição de si mesma. Aí está a grande excelência de Gal Costa captada por Caetano Veloso, talvez o melhor compositor para absorver essas nuances de sua voz, mas, acima de tudo, de sua personalidade interpretativa. Gal Costa confia em Caetano Veloso e a ele se entregou neste projeto. E talvez seja um tanto incômodo, para algumas pessoas, ter a certeza de que Caetano tem com Gal uma conexão que nunca teve e jamais terá com nenhuma outra cantora. Isso é amor. Um amor amadurecido e eternizado em “Recanto”.
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O grande problema é que os críticos desejam que Gal Costa interprete fora de cena. Mas quem a acompanha sabe que sua interpretação está reservada ao palco e destinada à música. Ser intérprete em entrevistas não é o seu forte, ser intérprete nos palcos é sua realeza. Gal Costa não dá entrevistas sob efeito de nenhum tipo de substância que a deixe “mais inspirada”, como muitas ainda o fazem. Gal Costa quer cantar e ela o pode fazer. As críticas circunscrevem Gal Costa a uma definição pejorativa de cantora passiva. São críticas burras, sem o mínimo de reflexão. Dizem que Gal Costa é uma mera vocalista. Se seguirmos este raciocínio primário, o que falaríamos das atrizes e bailarinas? Exigiríamos que as atrizes fossem também escritoras, diretoras, roteiristas, maquiadoras, figurinistas e cenógrafas de seus próprios trabalhos? Desmereceríamos o seu potencial criativo por não ocuparem essas funções ou por não terem sido elas as autoras dos textos que dizem em cena? Exigiríamos o mesmo das bailarinas? Transformaríamos bailarinas em coreógrafas compulsoriamente? Não. Isto não é ser intérprete. Ser uma grande intérprete é ser como Fernanda Montenegro: humilde, excelente no que faz, reinventora de sua técnica e não-técnica, atenta aos diretores com quem trabalha. Ser intérprete é impor-se em equipe, deixar uma assinatura sem submergir os outros ao redor. Gal Costa é uma atriz da voz. Ser atriz é ter a capacidade de interpretar vários papéis completamente diferentes. Ser intérprete é mudar sempre.“Recanto” é o álbum do ano.
Rafael Noleto - este autor já contribuiu com 26 posts no midiatico.com.
Rafael Noleto é mestrando em Antropologia (UFPA) e graduado em Música (UEPA). Desenvolve pesquisas sobre música e sexualidade. Canta e compõe nas "horas vagas". 

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