Abel e Caim encontraram-se depois da morte de Abel. Caminhavam pelo deserto e reconheceram-se de longe, porque eram ambos muito altos. Os irmãos sentaram-se ambos na terra, fizeram uma fogueira e comeram. Guardavam silêncio, à maneira das pessoas cansadas quando declina o dia. No céu aparecia uma ou outra estrela que ainda não recebera o nome. À luz das chamas, Caim reparou na marca da pedra na testa de Abel e deixou cair o pão que ia levar à boca e pediu que lhe fosse perdoado o seu crime.
Abel respondeu:
- Tu mataste-me ou fui eu que te matei? Já não me lembro; aqui estamos juntos como dantes.
- Agora sei que na verdade me perdoaste - disse Caim -, porque esquecer é perdoar. Eu tratarei também de esquecer.
Abel disse devagar:
-É verdade. Enquanto dura o remorso dura também a culpa.
Jorge Luis Borges.
Elogio das Sombras. In: Obras Completas II 1952-1972
"E assim sou, fútil e sensível, capaz de impulsos violentos e absorventes, maus e bons, nobres e vis, mas nunca de um sentimento que subsista, nunca de uma emoção que continue, e entre para a substância da alma. Tudo em mim é a tendência para ser a seguir outra coisa; uma impaciência da alma consigo mesma, como com uma criança inoportuna; um desassossego sempre crescente e sempre igual. Tudo me interessa e nada me prende. Atendo a tudo sonhando sempre;(…)" (Fernando Pessoa, in "Livro do Desassossego")