Grande, grande, grande ARACY DE ALMEIDA
"a primeira cantora da dor feminina - aquela que chora o fim da paixão e lamenta a ausência do homem amado"
Não me diga adeus
Saia do caminho
IMPERDÍVEL
"Aracy de Almeida, mulher do futuro" na ótima Revista Piauí
http://www.revistapiaui.com.br/2007/mai/perfil.htm
Afora pesquisadores de música brasileira e velhos saudosistas, quem ainda ouve Aracy de Almeida? Mesmo esses, desconfia-se, não conseguem fugir da imagem, implacável e simplista, que a perseguiu como uma sombra por toda a sua vida: a cantora do Noel Rosa. Não que isso seja demérito — cantar Noel é uma coisa; ser a cantora do Noel a torna figura maior na música brasileira. Mas como, a partir dos anos 50, não existe uma reportagem ou entrevista com a cantora cujo assunto não seja Noel, como se ela fosse uma espécie de porta-voz póstuma, ou herdeira, a imagem é reducionista. A sua arte não se resume a cantar Noel.
Nas primeiras gravações de Aracy, duas marchas para o Carnaval de 1934, percebe-se a influência de Carmen Miranda em cada nota emitida pela cantora ainda imatura, na flor dos seus 20 anos. Era o “mirandismo”, voga que não dava espaço a qualquer alternativa: ou se cantava como Carmen Miranda, ou ninguém ouvia. Aracy seguiu à risca a receita — os trejeitos, a picardia, a leveza nos temas, o erotismo e o humor, engrossando o enorme bloco de subcarmens, todas a milhares de quilômetros do que o modelo conseguia fazer com espantosa naturalidade. O resultado foi um desastre.
Se seguisse na toada, seu destino seria o mesmo das dezenas de cantoras que hoje ninguém consegue ouvir. Ou você tem ouvido muito Alzirinha Camargo, Cyrene Fagundes, Zaíra Cavalcanti, Madelou Assis e Carmen Barbosa? Aquele subproduto frívolo e postiço da pequena notável não era a mesma cantora que, em dezembro do mesmo ano, afirmou sua personalidade no samba “Riso de criança”, de Noel. O processo de transformação se completa quando ela troca a gravadora Columbia pela rca Victor, e lança, no ano seguinte, “Triste cuíca” — o autor, desnecessário dizer, Noel Rosa, desta vez em parceria com Hervé Cordovil. Nascia nossa primeira cantora da dor feminina.
Até então, a pancadaria contra as mulheres comia solta na música brasileira. Como no samba de Ismael Silva, Freire Júnior e Francisco Alves “Amor de malandro”, que diz: “se ele te bate, é porque gosta de ti, pois bater-se em quem não se gosta eu nunca vi”. Ou na sensacional marchinha de Sinhô, “Pé de anjo”: “a mulher e a galinha são dois bichos interesseiros, a galinha, pelo milho e a mulher, pelo dinheiro”. Carmen Miranda, com sua presença arrasadora, equilibrou a peleja. Mas se com ela a mulher se tornou independente, ainda não lhe era permitido contar a sua dor, como se as vicissitudes da vida fossem exclusivas do universo dos machos. E dá-lhe vestidos justíssimos, rebolado, duplo sentido, olhinhos virados e sorrisos maliciosos. Pode se imaginar o efeito, em pleno 1937, do diálogo entre a cantora e o coro, formado somente por vozes masculinas, na marcha de Ary Barroso, “Eu dei”: “(ela) Eu dei/ (eles) o que foi que você deu, meu bem?/ (ela) eu dei/ (eles) guarde um pouco para mim também/ (ela) eu dei/ (eles) diga logo, diga logo, é demais!/ (ela) adivinha se és capaz!”. Tatá Miranda, irmão mais moço de Carmen, declarou no enterro da amiga: “Uma das grandes admiradoras de Aracy era a própria Carmen, que reconhecia nela a criadora de um estilo”.
A frase é conhecida: isso é samba ou é aquilo que a Carmen Miranda canta? Noel não perdoava a suposta superficialidade de Carmen. Afinal, “o samba é a tristeza que balança”, na insuspeita opinião de Vinicius de Moraes. E ele, o samba, até então não entrava nas nuances da relação entre homens e mulheres. A mulher, na visão dominante, cumpria o seu papel de submissa e pouco confiável, e o homem, em geral, era um rematado cafajeste. Noel, para quem “malandro é palavra derrotista que só serve pra tirar todo o valor do sambista” (“Rapaz folgado”, da polêmica com Wilson Batista), viu em Aracy o veículo ideal para sua empreitada modernizante da música popular.
Quando Aracy (que no primeiro contrato com a rca Victor assinava “Araci d’Almeida”) gravou “Último desejo”, em 1937, num disco que o compositor não chegou a ouvir, pode-se dizer que Noel atingiu seu propósito: uma melodia moderna, melancólica, uma letra que retrata o fim de uma relação amorosa sofrida e madura, sem pieguices, vinganças ou arroubos de destruição do bem-amado. O regional de Benedito Lacerda faz a base para o solo de flauta do líder — sinuoso, dolente — e para a voz de Aracy, a mulher que grita de solidão, chora o fim do amor, lamenta a ausência do homem amado. Uma dor tão pungente quanto a cantada por Elis Regina em “Atrás da porta” (Francis Hime e Chico Buarque, 1972). A partir daí, não haveria mais volta: a música popular brasileira se tornava definitivamente maior de idade. E permitiria que os compositores vissem o mundo com o olhar feminino. Como o Ary de “Camisa amarela” (“Roncou uma semana,/ despertou mal-humorado,/ quis brigar comigo, que perigo,/ mas não ligo), de 1939, o Assis Valente de “Fez bobagem” (“Meu moreno fez bobagem,/ maltratou meu pobre coração,/ aproveitou a minha ausência/ e botou mulher sambando/ no meu barracão”), ou o Ciro de Souza de “Vai trabalhar” (“Isso não me convém, e não fica bem,/ eu no lesco-lesco na beira do tanque pra ganhar dinheiro/ e você no samba o dia inteiro”), ambas de 1942 — as três cantadas pela voz anasalada da doce Aracy de Almeida.
É a própria Aracy quem conta seu primeiro encontro e sua relação com Noel: “Quando fui cantar no rádio pela primeira vez, levada por Custódio Mesquita, ao passar na varanda da Educadora, vi Noel. Estava sentado e ali continuou. Não deu bola nenhuma pra mim. Quando terminei de cantar ao microfone ele se aproximou: ‘Gostei muito, você cantou muito bem. De onde você é?’ Fizemos logo uma boa camaradagem. Esperei que ele também cantasse pra não sair da boca. Quando terminou foi logo convidando: ‘Vamos até a Taberna da Glória tomar umas cascatinhas?’ Fui. Lá encontramos com uns amigos dele, uns malandros chapados. Ficamos lá até tarde. Noel então me trouxe em casa em um ônibus da Viação Brasil. Já eram mais de 4 horas da manhã quando chegamos ao Engenho de Dentro. Viemos a pé até o Encantado. Bateu na porta de casa e, quando mamãe abriu, ele falou: ‘Vim trazer sua filha aqui’. Apresentei: ‘Este é o Noel Rosa’. Nesta noite, ele marcou um ensaio para me dar algumas músicas. No dia seguinte, fui à casa de Noel. E daí em diante passei a conhecer com ele os piores lugares do Rio de Janeiro. No rádio, havia gente que franzia o nariz diante de nós. Éramos tidos como gente que não prestava. Noel não tinha então muito cartaz. Me lembro dele, um dia, vestindo uma capa minha, botando um chapéu meu e rebolando pela rua, implicando com todo mundo. Íamos sempre comer sardinhas na Lapa ou então seguíamos para um boteco na rua Comandante Mau¬rity onde fazíamos chacrinha: eu, Noel, Baiaco, Germano Augusto, Kid Pepe, Brancura, Ismael Silva, Orestes Barbosa, Sílvio Caldas. Mas vamos botar as cartas na mesa: entre mim e Noel nunca houve coisa nenhuma”.
Aí, então, cabe a pergunta: como era a vida amorosa da artista com fama de sapatão, e que no entanto cantava como uma dona-de-casa apaixonada, e que garantiu não ter namorado com Noel? No final dos anos 30, Aracy dividiu o travesseiro com o goleiro do Vasco da Gama, time de seu coração. Ela mesma atestou, num formulário da Previdência, aos 25 anos: “estado civil, casada; nome do esposo: José Fontana”. Conhecido como Rey, o goleiro disse que, certo dia, em casa, começou a encerar o chão para se exercitar — Aracy estava fora — quando batem à porta. Ele atendeu e deparou com o incansável (e pouco confiável) David Nasser, que queria mostrar uma música para a cantora. O jogador, que foi também goleiro da seleção, disse que se o compositor encerasse toda a casa, Aracy gravaria a música. Nasser empunhou o vassourão e, em duas horas, o chão brilhava. Quando chegou em casa, Aracy se surpreendeu com o belo trabalho. Rey contou a história, defendeu Nasser, e Aracy gravou “Com razão ou sem razão”. O amor é realmente lindo.
Mas tem seus altos e baixos. No seu livro de memórias, o compositor Pedro Caetano diz que, quando Aracy gravou “Engomadinho” (dele e Claudionor Cruz, em 1942), um de seus grandes sucessos, ela vinha de uma briga com o namorado. Durante um ensaio, quando Aracy chegou no pedaço da canção que diz: “O rei do meu amor”, jogou o papel onde estava escrita a letra para o alto, parou de cantar e gritou: “Não gravo mais essa merda. Não quero dar cartaz àquele pilantra. Ou muda tudo agora, ou até amanhã”. Pedro Caetano teve que reformular o final da letra. A emenda saiu, no caso, melhor do que o soneto: “A chave que abriu a liberdade para o meu coração cheio de dor está na voz e na simplicidade deste seresteiro que é o meu amor”.
“Em 1936, foi aí que me meti no meio do rádio e descambei”, disse Rey, referindo-se a seu caso de dois anos com a cantora Zaíra Cavalcanti, antes de conhecer Aracy. Ele circulava no meio dos artistas, morou com Nelson Gonçalves em 1937, freqüentava o Cassino da Urca e, pelas contas, acabou vivendo com Aracy pelo menos de 1938 a 1942. Em 1940, Rey se gabava de que a mulher de Tyrone Power chegou a largar o astro americano para ficar com ele. O que se dizia é que Rey decidia o que Aracy gravava naqueles tempos. Ou pelo menos foi o que achou o David Nasser.
O que faz mais pensar em Rey, porém, é ouvi-la cantar o seu romance. O caso começa com “Camisa amarela”, prossegue com “Já jurei”, de Nássara e Rubens Soares (“jurei, mais uma vez vou jurar:/ eu não quero mais amar”), de julho de 1939, e o desfecho magoado vem com “Positivamente não”, de Ataulfo Alves e Marino Pinto (“Vivo triste, muito triste, em desventura,/ com o peito em febre e o coração cansado de sofrer. Vejo em minha vida apenas amargura./ Todos vêem, só tu é que não queres ver...”), de maio de 1940.
Se Aracy dava voz ao sentimento feminino, e era a intérprete ideal da sofisticação poética que Noel levou ao samba, ela também não descuidava da malandragem, que ela definia como “fuleiragem”. Ela dizia: “Eu era uma xavante”, “Eu sou a maior fuleiragem que existe”.
Em 1970, Aracy explicou à Última Hora como funcionava o sistema da música nacional: “No rádio, eles faziam assim uma elite, eles formavam assim uma massa compacta de autores, por exemplo, para não me dar música. Ary Barroso, Assis Valente, Joubert de Carvalho, Lamartine Babo e Custódio Mesquita — essa gente não me dava música porque me achava um lixo, tá entendendo? Por causa dessa minha vida, desse meu modo de falar de coisas assim, eles não gostavam de mim, eles davam pra outras pessoas que fingiam talvez ser uma pessoa assim, tá entendendo? De maneira que quem acreditou em mim mesmo foi o Noel, que gostava desse meu gênio, me achava uma pessoa genial. Mas os outros não achavam, não. Entendeu? Aliás, o Noel tinha lá sua cuca bem fundida, sabe? Ele tava bom pra viver essa época agora, porque todo mundo tá louco, mas ele era também muito maluco. Maluco demais, xingava as pessoas, botava apelido”.
Depois de sua morte, em 1937, Noel Rosa caiu no ostracismo. Por mais de uma década, como demonstram seus biógrafos João Máximo e Carlos Didier, pouca gente gravou Noel. Foi um processo mais amplo que fez com que ele voltasse. Com o fechamento dos cassinos, foram varridos do mapa carioca os grandes espetáculos, com orquestras, corpo de baile e músicas apropriadas para um público maior. Começaram a pipocar, em Copacabana, as pequenas boates onde as canções intimistas de Noel encontraram um porto ideal para desembarcar de uma vez por todas. E quem cantava as suas músicas? Aracy.
Mas o jogo tinha mudado também para ela. A antiga fuleira, que Noel apresentou à boemia barra pesada carioca, malandros e marginais, agora andava com intelectuais, cronistas e jornalistas. De 1948 a 1952, ela virou atração para o público rico da boate Vogue. Exumando a obra de seu mentor, e trazendo à luz músicas inéditas dele, os suburbanos Aracy e Noel conquistaram, definitivamente, a Zona Sul. Entre as canções desconhecidas do público estavam jóias como “Três apitos” e “Cor de cinza”.
A longa temporada na Vogue resultou num dos primeiros álbuns que hoje seriam chamados de “conceituais” da fonografia nacional: da primeira à última faixa, formando um todo, Aracy canta Noel. Com apresentação caprichada, arranjos de Radamés Gnattali, capa de Di Cavalcanti (que, diga-se, não é lá essas coisas), o disco se tornou um sucesso imediato, jogou Aracy para o topo da parada de sucessos. Seguiram-se outros dois pela Continental, um deles também dedicado a Noel. Algumas canções desses três discos saltaram da condição de inéditas para a de clássicos instantâneos. Para o mercado, foi o canto do cisne de Aracy.
Mas o show precisava continuar. Assim, pois, como houve o Sinhô de Mario Reis, passou a existir o Noel de Aracy. Aliás, como observou o pesquisador Miguel Ângelo de Azevedo, o Nirez, até a morte de Noel, em 4 de maio de 1937, Aracy só havia lançado dez músicas de autoria dele. Era menos do que Mario Reis, Francisco Alves e Almirante. Nirez escreveu: “Depois da morte de Noel Rosa, e muito tempo depois mesmo, é que Aracy foi considerada ‘a intérprete de Noel’, por ter convivido com o poeta da Vila, por ter gravado músicas dele, por continuar cantando e gravando músicas dele. Aracy só gravou Noel até 1938, voltando a fazê-lo em 1947, quando gravou ‘Pela décima vez’, e depois em 1949, quando gravou ‘João Ninguém’”. No início dos anos 50, lançou dois álbuns com músicas de Noel.
Em 1966, resenhando um show da amiga (“rainha dos vago-simpáticos”) na boate Zum-Zum, no Rio de Janeiro, com Billy Blanco e Sérgio Porto, Vinicius de Moraes relembrou o tempo em que a conhecera:
“A partir de 1951 nos tornamos amigos. Ela saía sempre com o nosso grupo de boemia, que por essa época se constituía de Antônio Maria, Fernando Lobo, Paulo Soledade, Dorival Caymmi e uns quantos mais aderentes variáveis. Foi a época áurea da boate Vogue, do falecido barão von Stuckart, onde Antônio Maria trabalhou uns tempos como relações-públicas. Na boca da madrugada, púnhamos Aracy no ‘seu táxi’ (pois ela tinha um praticamente a seu serviço) e lá partia ela para a sua casa no Encantado. Dois anos depois eu lhe daria meu primeiro samba para gravar. Ninguém podia avaliar bem a riqueza interior dessa ‘menina’ (pois Aracy nunca chegou a ficar realmente adulta) que saiu da pobreza mais franciscana para a glória mais inconteste, sem nada perder de sua sensibilidade, timidez e total desambição. Possui ela um tesouro de amor que dá às escondidas, cheia de pudor de que a percebam em ato de amor”. O samba-canção, com música de Antônio Maria, era “Quando tu passas por mim”. Eles iam visitá-la em São Paulo, no “avião dos covardes”, como Aracy chamava o trem que a devolvia à Central do Brasil, embalados no papo. Em 1952, Aracy disse à Revista do Rádio: “Não gosto de viajar. Por isto não fico rica, pois o que dá mais dinheiro no rádio são as excursões. Não acredito no dia de amanhã, vivo no presente. Gosto de assistir e atuar em televisão. Não gosto de rádio. Meu ideal era ser funcionária pública, para ter horário de trabalhar, pois em rádio não se tem horário. Por isto é que digo: os barnabés é que são felizes”.
Aracy de Almeida nunca foi bonita. Sempre com um palavrão cabeludo engatado na boca, gírias em escala industrial, não atraía muitos amantes. Já os seus principais amigos eram todos homens, como Maria, Vinicius, Fernando Lobo, Clóvis Graciano, Di Cavalcanti, Carlão Mesquita e Aldemir Martins. Também se dava bem com gays, como o estilista Denner e o cantor da noite Murilinho de Almeida. Denner, aliás, foi o criador do modelo pelo qual ela viria a ser conhecida: calça comprida, porque ela já não ficava bem em vestidos; bota ortopédica, pois ela tinha pés chatos; e camisas da Vigotex, que a associavam ao imaginário psicodélico, reforçado pelo cabelo black power e os óculos de armação grossa.
Ainda assim, Aracy possuía um tesouro que não se furtava a exibir a amigos, muito pelo contrário: os seios. Eles eram uma unanimidade para quem os tinha visto — lindos. São vários os relatos de Aracy mostrando os seios em boates, restaurantes e festas. Num deles, no livro Rio, pra não chorar, de J. Pettezzoni, membro do famoso grupo de cafajestes cariocas, ele conta a história de um concurso de seios, improvisado, num apartamento. A freqüência feminina, em sua maioria deliciosas jovens bronzeadas, inviabilizaria a possibilidade de vitória de Aracy, que ficou calada num canto. Os cafajestes provocaram a veterana a concorrer. Ao que ela retrucou, dizendo que não participaria pois ganharia fácil. Risada geral. Depois de muita insistência, Aracy mostrou os seios. Resultado: triunfo da mulher que, com o passar dos anos, foi se tornando sinônimo de repulsa ao sexo. Sinônimo que não valia para o Capita, apelido que os amigos davam ao namorado que Aracy levava a tiracolo desde o final dos anos 50.
“O Capita era muito discreto”, lembrou Aldemir Martins. Em 1962, num documento do Ministério da Guerra, consta a identidade de Capita: o coronel-médico reformado Henrique Leopoldo Pfefferkorn. Logo abaixo da assinatura, um endereço escrito a mão: “Almeida Bastos, 294”. O mesmo de Aracy.
Nascido no Rio de Janeiro, em 1906, descendente de alemães, o coronel tinha 1,81 metro, olhos castanhos e pele clara. Serviu como intérprete aos soldados alemães capturados na costa brasileira durante a Segunda Guerra. O apelido devia se referir a esses tempos: era capitão-doutor. Quando Aracy morreu, em 1988, ele já estava com 82. Aracy preferiu manter seu caso na clandestinidade porque ele era casado. Em julho de 1990, morreu o último amante de Aracy.
Abelardo Barbosa, o Chacrinha, conheceu a cantora em 1941, quando era locutor na Rádio Tupi: “Moramos durante cinco anos no mesmo hotel, em São Paulo, e freqüentamos o mesmo trem que nos levava para lá. Ela começou como jurada no meu programa”. Aracy, numa de suas últimas entrevistas, ao dramaturgo Antônio Bivar, em 1986, explicou melhor: “Eu não tinha essa mania de ser jurada, não. Quem me botou foi o Paulinho de Carvalho. Eu fui fazer uma entrevista com a Hebe Camargo, fez tanto sucesso as besteiras que eu disse, que eu tomei conta do programa. Então ele falou comigo: ‘Ora, Aracy, você não quer fazer um programa de calouro aqui na Record?’ Foi quando eu disse que não queria ser dona do programa, eu queria trabalhar como jurado. Então ele me botou naquele programa É Proibido Colocar Cartazes, com o Pagano Sobrinho”.
Em 1968, a pedido da própria Aracy, Caetano Veloso compôs uma música para ela, “A voz do morto”. Ela a gravou, num compacto-simples, para a Bienal do Samba de São Paulo daquele ano. O morto, claro, era Noel Rosa. Não se sabe por que, a música foi proibida pela censura, e ficou praticamente desconhecida. Mas ela ainda a cantava no ano seguinte, no show Que maravilha!, com Jorge Ben e Paulinho da Viola. Aracy gostava daquela turma nova. Eles a adoravam.Saindo do show, no Teatro Cacilda Becker, ela emendava em outro na boate Canto Terzo, numa espécie de espetáculo conversado com o ator Pagano Sobrinho. Não se tratava mais de música, mas, segundo ela mesma, de “humorismo”. Em 1976, na boate Igrejinha, ela fez o show Um homem, uma mulher, em dupla com a transformista Valéria, que nos contou que Aracy sempre a interrompia quando ela começava a se exceder nos trejeitos e jogação de plumas.
Gostava muito dos amigos que fez no começo da carreira: Francisco Alves, Sílvio Caldas. Todos cantavam no coro das gravações uns dos outros. Mas no final dos anos 40 esse já era um outro tempo. Ela acompanhara a evolução desse tempo. E sempre falou o que pensava desse passado. Foi justamente o que a fez permanecer viva como cantora na década seguinte. E, num certo sentido, pelo resto da vida. Afinal ela encarnava como jurada o papel da especialista no passado da música popular brasileira. O que pouca gente então se lembrava é de que ela sempre foi uma mulher do futuro.
A Aracy que morreu em 1988 não era mais a artista favorita de amigos influentes e interessantes. Na verdade, o show de calouros do apresentador Silvio Santos (“é muito bom patrão — sempre paga em dia”, segundo ela) perdeu uma de suas juradas. A cantora dos versos mais tristes do samba e marchinhas surreais, a amiga que ministrou supositório em Antônio Maria, a mulher que tinha orgulho de seus seios, que gastava todo o dinheiro que ganhava com presentes para os amigos, ouvinte de Debussy, que dizia gostar mais de cachorro do que de gente, refugiada em sua casa no Encantado, fazendo feira, lendo a Bíblia, foi enterrada numa véspera de São João. Milhares de pessoas cantaram “Não me diga adeus” (de Luiz Soberano, J. C. da Silva e Paquito), seu grande sucesso de 1948.
Mas poucos, além do próprio Caetano Veloso, presente ao enterro, sabiam os últimos versos feitos para ela:
Eu canto com o mundo que roda,mesmo do lado de fora,mesmo que eu não cante agora,ninguém me atende, ninguém me chama,mas ninguém me entende, ninguém me engana, eu sou valente, eu sou o samba,a voz do morto, atrás do muro,a vez de tudo, a paz do mundo,na Glória.
(ALEXANDRE BARBOSA DE SOUZA E LEONARDO SILVA PRADO)
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