Tinha um negocinho verde na minha escova de dentes. Tava preso na base das cerdas. Enfiei a unha ali até conseguir tirar. Era um pedaço de alface.
— Linda, tem uma porra dum pedaço de alface na minha escova!
— ...
— Tu andou usando a minha escova de dente?
— Claro que não! – ela gritou da sala.
— E desde quando eu como alface? Eu não como planta e tu sabe muito bem. Por que tu usou minha escova?
— ...
— Linda, por que tu usou a minha escova?
— Eu perdi a minha. Ela perdeu a escova dela.
— Como é que é?
— Perdi a minha escova, droga! Usei a tua uma vez só, não vai te matar.
— Como assim perdeu a tua escova? Como alguém per¬de uma escova de dentes?
— Sei lá, caralho, ela sumiu.
Como faria ela entender que não se usa a escova de dentes de outra pessoa? Linda é assim mesmo. Ela é capaz de perder sua própria escova de dentes. Ela dorme no meu apar-
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tamento nos fins-de-semana e às vezes aparece também nos dias úteis, pra comer minha comida, beber minha cerveja e dormir abraçadinha comigo. Somos como todo mundo, precisamos disso de vez em quando. Ao voltar pra sala, esperava que ela pedisse desculpas por ter usado minha escova. Ela nem olhou pra mim, estava futricando alguma coisa entre os dedos do pé. Eu ainda segurava a escova de dentes, ofendido. Precisava de alguma indicação de arrependimento dela, só pra neutralizar este meu ódio irracional causado pelo pedaço de alface, um ódio que no momento me parecia justificado, e cuja banalidade só pude perceber minutos mais tarde. A indiferença dela me irritou tanto que atirei a escova de dentes na sua direção.
— Agora pega essa merda pra ti.
Eu sei que não precisava. Mas pequenas causas de orgulho e ódio são excelentes motivadoras de atos impensados. Ela catou o cinzeiro de vidro e jogou na minha cara, acertou na testa.
— Qual é a tua? Imbecil.
Dei um tapa na cara dela.
Tirei toda a roupa de Linda e deitei-a de bruços na cama. Ela ainda chorava. Lambi a parte interna de suas coxas. Ela botou os fones de ouvido nas orelhas e ligou o walkman. Depois empinou um pouco a bunda, mas não muito, senão
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sente dores nas costas. Como sempre, começou a falar, agora contando uma história sobre o irmão menor dela, que certa vez trouxe duas tartarugas para criar em casa. Ele construiu um viveiro enorme para elas, com mais de um metro quadrado. Tinha um laguinho, plantas, pedras, uma caverna, tudo que uma tartaruga poderia desejar. Com a cara enfiada entre as nádegas dela, eu podia escutar por trás deste fascinante monólogo o som dos fones de ouvido, era uma fita da PJ Harvey. Mantinha os olhos sempre fechados. Desde o primeiro dia, o irmão colocou folhas de alface no viveiro das tartarugas (creio que não foi proposital a escolha de um epi¬sódio envolvendo alface, deve ter sido uma associação men¬tal inconsciente, não pude culpá-la). No primeiro dia elas não comeram. Nem no segundo. Aproximei o dedo da boca para cobri-lo de saliva. Toquei o cu de Linda, ela interrompeu por alguns décimos de segundo a sua história. Depois continuou, só que mais pausadamente. Tinha parado de chorar, e sorria docemente enquanto falava. O irmão experimentou dar pedaços de carne às tartarugas, mas elas rejeitaram. Depois de cinco dias de jejum, elas estavam bastante debilitadas. Os cascos amoleceram. O cuzinho dela rendia-se, ma¬cio. Enfiei devagar, medindo no mesmo ato violência e carinho. A ternura que sentia por Linda naquele instante era intolerável. Ela ficou quieta por um tempo. Logo depois retomou a narrativa, agora pontuada por expirações curtas e vigorosas. As tartarugas estavam quase mortas, quando ocorreu ao irmão colocar as folhas de alface no laguinho. Os bichos pularam para dentro d'água e devoraram compulsiva-
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mente a verdura. Como poderia saber que só comiam dentro da água? Mas as tartarugas estavam salvas. Peguei um dos fones, botei na minha orelha e beijei Linda até que nossas bocas já não soubessem mais o que fazer. Quando a fita ter¬minou ela disse:
— Vamos no cinema.
(é que logo em seguida ao tapa percebi todo o absurdo daquele nosso enfrentamento, ela nem botou a mão no rosto nem nada, apenas encarou-me incrédula e esperou, pois já sabia que eu pediria perdão, me arrependeria, me sentiria mal, um merda, um filho da puta. Abracei-a com força naquele silêncio que vem depois de todo tapa, apaziguamo-nos, não havia problema que ela usasse minha escova, que usasse qualquer coisa, mas às vezes precisamos de inimigos para descarregar nossa amargura. Realizei meu ataque utilizando como pretexto o primeiro evento disponível e espera¬va que ela me desse razão para que todo o meu pequeno ódio pelo mundo tivesse fundamento. Não fui capaz de ver as coisas do ponto de vista de Linda, que ela pudesse usar a minha escova de dentes caso precisasse era um pressuposto de nossa intimidade, algo importante para ela. Abracei-a e pedi desculpas muitas vezes, ela chorou mas senti-me perdoado, nos beijamos, acontece, a gente briga de vez em quando eu falei, ela sorriu um pouquinho, é, acontece. Fomos para o
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quarto, enfiei a mão por dentro de sua camiseta, acariciei suas costas, a gente se ama, ela ainda chorava.)
Fomos assistir uma comédia romântica bobalhona. Linda adorava melodramas, dizia que "às vezes é bom ver filmes desse tipo". Vinte minutos de caminhada até o cinema, escurecia. Antes do filme sentamos para tomar um café. Linda fumou três cigarros, quantidade que ela costuma consumir em dois dias. Não gosto quando ela fuma, pega um gosto horrível na boca. Na bilheteria do cinema, vimos o cartaz do filme escolhido. Tinha a Julia Roberts. Entramos atrasa¬dos numa sala de projeção com uma dúzia de sujeitos espalhados aos pares pela platéia. Sentamos numa fileira do fundo. Quando o filme começou ela encostou a cabeça no meu ombro. Segurei sua mão.
O início era o mesmo de todo filme norte-americano. Uma divertida cena introdutória, seguida da apresentação de cada um dos personagens. Linda me sussurrou no ouvido que precisava ir no banheiro. Depois que saiu, desliguei minha atenção do filme e caí num fluxo de devaneios. Imaginei minha vida sem Linda e compreendi o quanto verdadeira¬mente precisávamos um do outro. Sem ela eu tinha uma rotina de aulas e emprego, uma família no interior, um apartamento vazio, pouco mais do que isso. E eu, de certa forma, era pra ela um salva-vidas no meio de pais conservadores e
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pessoas, na sua opinião, idiotas. Todos eram idiotas.
Linda não retornava. Saí do cinema e gritei por ela no banheiro feminino, sem obter resposta. Procurei-a nos bares e cafés ao redor, mas ela havia desaparecido.
Concluí que devia ter voltado para o meu apartamento, ela tinha uma cópia da chave e dificilmente teria ido pra casa da família. Retornei para o meu prédio sem saber ao certo como reagiria ao encontrá-la, ou que explicação ela me daria, caso houvesse alguma. O apartamento, porém, estava vazio.
Sentei numa mesa da calçada e pedi um copo de trigo velho e uma Coca-Cola. Os bares já estavam todos cheios, passava das nove horas da noite. Reconheci uma pessoa aproximando-se a partir da calçada oposta. Era o Beto, um amigo dos tempos de colégio, que eu encontrava ocasionalmente pela noite. Sentou-se na minha mesa.
— E aí, como é que tá? Eu sabia que ia encontrar alguém pra tomar uma ceva!
— Oi.
— Vou baixar uma ceva pra nós!
Apenas sacudi a cabeça, elevando meu copo de trigo velho no ar. Torci para que ele entendesse a mensagem sem que eu precisasse dizer mais nada.
— Ah, ok. Mas vou tomar uma sozinho, então.
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— E aí, o que tem feito? Cadê a Linda?
— Boa pergunta.
— Vocês ainda tão juntos?
— Sim.
— Tou com saudade dela.
— ...
— Como vai a faculdade? Publicidade, né?
— Jornalismo.
— Isso. Tá curtindo?
— Não. Um pouco.
Ele encheu o copo com cerveja e bebeu num gole só. Olhou para baixo e depois para os lados. Tirou uma caixa de lenços de papel do interior da mochila, puxou um e assoou o nariz. Olhou para baixo novamente, e depois pra mim:
— Tu tá a fim de ficar sozinho?
— Na verdade, sim. Não leva a mal.
— Tudo bem. A gente se fala uma outra hora, então. Vou indo.
Esvaziou a garrafa no copo e tomou tudo, apressado. Nos cumprimentamos e ele se afastou. Chamei o garçom e pedi mais um copo de trigo velho. Bebi sozinho até que o álcool se tornasse um assunto mais urgente do que a ausência de Linda.
Entrei no apartamento, fui imediatamente ao quarto e encontrei ela deitada de lado na cama. Tirara apenas os sapa-
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tos e dormia com a boca entreaberta. Me ajoelhei e observei mais de perto seu rosto, parcialmente encoberto pelos cabe¬los emaranhados. Tinha olheiras, e a maquiagem preta e azul dos olhos estava um pouco borrada, enchendo de tristeza a cara bonita.
Voltei para a sala e avistei sobre a poltrona uma garrafa de vodka quase vazia. Estava aberta, deitada de lado assim como Linda sobre a cama, e uma porção de bebida havia escapado pela gargalo e molhado a almofada.
Peguei um copo na cozinha, enchi com água da torneira e bebi, repetindo mais duas vezes. No caminho para o banheiro, estranhei a presença de um saco plástico sobre a mesa da sala. Tinha no lado de fora o logotipo de uma farmácia. De dentro do saco, tirando uma por uma, contei vinte e oito escovas de dente.
(Daniel Galera, Dentes guardados. Livros do Mal: Porto Alegre, 2004. 3ª. ed. revista)
5 de jul. de 2010
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